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O Manduco

Publicado na ilha do Fogo, Cabo Verde, O Manduco teve uma vida efémera, que se estendeu de 1º de agosto de 1923 a 30 de junho do ano seguinte, não ultrapassando assim os 14 números. Nas cinco primeiras edições, figura como proprietário, diretor e editor Pedro Monteiro Cardoso; do número 6 até ao fim, os proprietários e editores passam a ser António J. Rodrigues e Miguel Soares Rosa, surgindo Augusto R. Monteiro como administrador e Eugénio Tavares como diretor.

O jornal era anunciado como quinzenal, com edições a 15 e a 30 de cada mês. No entanto, os três primeiros números não respeitaram essa periodicidade, tendo saído a 01.08, 01.09 e 30.09.1923, respetivamente. Também os dois últimos saíram com intervalos diferentes: o n. 13 a 08.05.1924 (quando o anterior tinha vindo a lume a 15.02, o que indica uma interrupção de cerca de três meses) e o n. 14 a 30.06 do mesmo ano.

Cada edição de O Manduco constava de 4 páginas, mas o n. 13, de 08.05.1924, teve 8 páginas. Os primeiros números custavam $25, ao passo que os dois últimos custavam o dobro. Não há informação sobre a tiragem do periódico nem sobre o número de assinantes. Refira-se ainda que o jornal não publicava anúncios nem publicidade.

Quanto ao conteúdo, observa-se que a atenção do periódico estava bastante voltada para a ilha do Fogo, embora a orientação de O Manduco não fosse propriamente regional. Nessa ilha do Sotavento cabo-verdiano nasceu o seu primeiro proprietário, editor e diretor, Pedro Monteiro Cardoso (1883-1942), poeta romântico-parnasiano de formação clássica, folclorista e articulista importante em que alguns têm visto um protonacionalista (cf. Cardoso, 2007).

O título do jornal, como escreveu João Nobre de Oliveira (1988, p. 349), era já um programa. Proveniente do crioulo da Guiné-Bissau, Manduco designa um cacete ou bastão. A palavra tinha começado a ser usada por Pedro Cardoso (sob o pseudónimo de Afro) em 1911, numa coluna intitulada “A manduco…”, no jornal A Voz de Cabo Verde. Mas a expressão não tinha um caráter ameaçador ou belicista; era sobretudo metafórica, indicando o compromisso firme do seu autor na luta pelo progresso de Cabo Verde.

Outro elemento paratextual que chama a atenção no jornal é a transcrição (que desaparece a partir do n. 6), abaixo do título, de um ponto da “Constituição Política da República Portuguesa”: “A expressão do pensamento, seja qual for a sua forma, é completamente livre, sem dependência de caução, censura ou autorização prévia, mas o abuso deste direito é punivel, nos casos e pela forma que a lei determinar”. Por outro lado, numa “Declaração prévia” incluída no número de estreia, o editor declara-se membro do partido socialista, embora se afirme empenhado exclusivamente na “defesa dos interesses da colectividade cabo-verdiana”, na sua “qualidade de cidadão luso-africano” (n. 1, 01.08.1923, p. 2).

E, de facto, alguns textos denunciam de forma contundente as falhas do poder colonial, por exemplo ao nível da instrução pública, considerada “Desorganizadíssima, um caos em toda a província, nomeadamente no Fogo.” (idem, p. 1), não valendo de nada, neste como noutros setores, os inquéritos: “Inquéritos, sindicâncias, inspecções, nunca deram resultado algum em terras que cobre a sublime bandeira lusitana. / Porque, toda a gente o sabe, porque toda a gente falta à verdade: o que inquire e os que depõem” (ibid.).

Ainda no n. 1, há um interessante poema de Pedro Cardoso, intitulado “Viva a França!”. Composto em alexandrinos, vem acompanhado de uma versão em francês feita por José Lopes, sendo dedicado “A Mr. Diagne, meu irmão de raça”. Trata-se de Blaise Diagne (1872-1934), líder político senegalês que foi o primeiro africano negro a ser eleito deputado do parlamento francês e a integrar o governo desse país. Embora se tenha batido pelos direitos dos africanos, era partidário da autoridade gaulesa e do seu modelo cultural e social. Cardoso proclama que “Entre as Nações do mundo a França é a primeira!” e destaca o alegado pioneirismo desse país no bom tratamento dos negros: “E, como sempre, audaz «Paladino» do Bem,/ os Negros nela só carinhos têm de mãe!” (p. 3).

As peças literárias são aliás uma constante no jornal, sobretudo as de Afro (pseudónimo de Pedro Cardoso), José Lopes e Eugénio Tavares (este último diretor do jornal a partir do n. 6, como ficou dito).

Uma última observação sobre o número de estreia diz respeito ao humor, presente de diversas maneiras. Uma delas consiste na transcrição, sem comentários, de um anúncio para o fornecimento de artigos para um quartel, em que o problema reside no posicionamento do complemento determinativo de matéria:

Arrematam-se os seguintes artigos, a quem apresente melhores propostas:
Travesseiros para soldados de palha;
Panelas para 50 homens de lata;
Marmitas para comerem praças;
Colheres para sopa de folha;
Mochilas de soldados de madeira;
Colchões para oficiais de arame. (p. 4)

 Mas o jornal desenvolve muitos outros temas, uns de incidência mais local (como a arborização do Fogo como estratégia para amenizar o clima da ilha), outros de alcance mais regional, como a defesa de um ensino adaptado às necessidades do arquipélago ou a argumentação a favor do crioulo, num artigo não assinado incluído no n. 3 (30.09.1923, p. 2). Opondo-se à tese de que o crioulo seria um elemento que bloquearia o desenvolvimento da província, sustenta o autor que a sua “eliminação levaria a uma conclusão absurda: o desaparecimento do povo que o fala…”, recordando “que nele é que compôs e compõe o sr. Eugénio Tavares as suas admiráveis canções musicadas, pelo povo perfilhadas em toda a Provincia”. É precisamente Eugénio Tavares quem volta ao tema no n. 11, de 30.01.1924, num artigo ironicamente intitulado “Língua de pretos”.

Também “A questão colonial” merece tratamento, em artigo assinado por “José d’África” e incluído no n. 5 (31.10.1923, p. 1). Começa o articulista por explicar o conceito, bem diferente do atual:

Colonial não é o que preza as colónias só por amor de Portugal (e com aquele exclusivismo a que não repugna a ideia da alienação delas para desafogo financeiro dele), senão aqueles que amam Portugal por amor às colónias (e com tão levantado sentimento de dignidade nacional, que darão o sangue em defesa de Portugal antes de apoiar qualquer plano de alienação territorial do Ultramar).

 Estamos ainda longe de uma defesa da autodeterminação ou da independência destes espaços. Mais modesta, a proposta vai no sentido de as colónias deixarem de ser encaradas como espaços de passagem e de enriquecimento rápido, e passarem a ser vistas como novas “Pátrias”, no sentido meramente etimológico da palavra:

Deixarão de ser possessões, porque já são Pátrias. Já não são minas abandonáveis mal se lhes esgotem os últimos filões; porque se erguerão a lares onde profundamente se terá raizado a felicidade doméstica; onde solidamente se terão cimentado, florescendo na coma de vigorosas aspirações, a dignidade cívica e a consciência social de uma raça.
 Francisco Topa

 

Para saber mais:

OLIVEIRA, João Nobre de. A Imprensa Cabo-verdiana (1820-1975). Macau: Fundação Macau, 1998.
CARDOSO, Olavo Bilac Barbosa Monteiro. Pedro Monteiro Cardoso e o protonacionalismo em Cabo Verde. Dissertação de mestrado em Estudos Africanos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2007.
CARDOSO, Pedro. Textos Jornalísticos e Literários, Parte I. Organização de Manuel Brito-Semedo e Joaquim Morais. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2008.
O MANDUCO. a. 1, n. 1 (1º ago. 1923) - a. 1, n. 14 (30 jun. 1924). Ilha do Fogo: 1923-1924. Disponível em: http://purl.pt/25635. [Consulta realizada em 07/11/2020].
O MANDUCO. Edição fac-similada. [S.l.]: Pedro Cardoso Livraria, 2016.

Tema(s): periódico
Sujeto: M