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Paquete do Ultramar
Capa do n. 1 do Paquete do Ultramar.
Periódico publicado de 5 de julho de 1839 a 27 de maio de 1840, 268 números. Fundador, proprietário e redator: Joaquim António de Carvalho e Menezes (ou Meneses). Impresso na “Typ. Ultramarina, rua Moinho de Vento a S. P. d’Alcantara n. 78” (do primeiro número). Com este periódico se inaugurou o jornalismo angolano (PACHECO, 1995), pois ele todo gira em torno do primeiro jornalista filho do país, político e funcionário público, além de proprietário (CORRADO, 2007). A linha editorial é definida, como de hábito, no primeiro número:
O Paquete do Ultramar propõe-se combater o deplorável sistema adotado pelo executivo em relação às nossas Províncias d’África e d’Ásia; tenciona indicar os meios que reputa mais próprios para diminuir os males, que pesam sobre os seus povos; e patentear ao público os excessos, os delitos dos Governadores e demais funcionários […]
Apesar disso, nos números que estiveram disponíveis em rede, a maioria das notícias é respeitante ao país europeu, possivelmente por escassez de notícias das colónias, lamentada nas suas páginas. A maior parte do noticiário é objetivo, limitando-se a poucos comentários ou nenhuns.
As secções do jornal também não parecem conjugar-se, inicialmente, com os objetivos. O periódico fica dividido em “Parte Oficial”, “Cortes”, “Interior”, “Preços correntes na semana finda” e o registo do porto (“Navios à carga”, “Entrados” e “Saídos”). As duas últimas secções formam, na verdade, uma só. A comprová-lo, no número 2, a secção de “Preços correntes” é antecedida por “Carreira regular de paquetes entre Lisboa e Hamburgo”.
No segundo número insere-se uma nova secção, entre o noticiário das sessões das “Cortes” e o do “Interior”. Ela intitula-se “Província de Angola” e justifica-se por informações recebidas. A única fonte explícita é uma carta do Rio de Janeiro.
No terceiro número insere-se outra secção nova, de noticiário internacional, intitulada “Notícias estrangeiras”. Quanto à secção portuária, resume-se às embarcações entradas e saídas.
No quarto número encaixa-se, entre o noticiário do interior e as informações úteis ao comércio portuário, um “Comunicado” relativo a uma notícia de Angola. O “Comunicado” mostra que o noticiário das colónias não tinha colocação definida no jornal, encontrando-se geralmente a meio, com os noticiários internacional e do interior.
Ele também nos é útil por outro motivo. É que narra um golpe desonesto feito por um burlador em Angola e avisa que ele seguiu para o Brasil em fuga. O burlador era “náutico” e tinha família nos EUA. A vítima principal fora o negociante Bernardino da Silva Guimarães, “natural daquele país” (refere-se a Angola). Segundo várias fontes, Bernardino da Silva Guimarães era mestiço e dono de uma significativa biblioteca na época. A denúncia mostra uma das estratégias de Carvalho e Menezes para defender os filhos das colónias: usar a secção de notícias para denunciar situações de que eram vítimas.
No número cinco se introduz uma extensa “reportagem” sobre a atuação dos “ingleses no Brasil”, entre a secção do “Interior” e a das informações portuárias, às quais se seguem as “Notícias estrangeiras” e depois uma nota sobre a próxima peça do Teatro da Rua do Conde (Os dous renegados). A inserção da matéria sobre os “ingleses no Brasil” dá voz aos protestos dos negociantes ligados ao tráfego Angola-Brasil sobre os exageros e abusos da Marinha britânica e da sua diplomacia agressiva. Sabe-se que, em nome do combate ao tráfico de escravos, os agentes de Sua Majestade britânica iam, na prática, prejudicando os negociantes mais fortes dessa rota marítima e comercial – quase todos lusófonos. As polêmicas arrastar-se-iam ainda durante alguns anos, sobretudo em periódicos brasileiros e envolveriam um barco propriedade da mãe (de facto, propriedade do pai) de um poeta e jornalista angolano: José da Silva Maia Ferreira. Ou seja, de alguma forma essa reportagem era ainda relativa à Província de Angola e a colocação continuava, por isso, oscilante na diagramação e na editoração, manifestando-se agora também variável a posição das “notícias estrangeiras”.
As colaborações seguem um estilo informativo, prático, denotativo, longe do cariz polêmico dos dois livros publicados pelo autor, igualmente pouco dado às flores da retórica mas cultivando muito mais a veemência, a hipérbole, a invetiva direta e acintosa, humor rasante e julgamento severo (PACHECO, 1995). Só numa fase mais avançada do periódico essas caraterísticas aparecem, tornando-se exemplar o seu texto de resposta a um discurso de Sá da Bandeira (MENEZES, 1840).
O seu conteúdo, como se vê pelo resumo dos primeiros cinco números feito aqui, envolve o triângulo luso-atlântico, sobretudo Angola-Brasil-Portugal e respetivos portos, assumindo o tráfego marítimo um valor relativamente importante e comum na época. Com o tempo se manifestou a verdadeira intenção que terá levado a criar o Paquete: fazer a defesa do desenvolvimento e possível autonomia de Angola, para além de defender os interesses dos filhos da terra.
O protagonista do Paquete do Ultramar também liga, pela sua vida literária e política, os portos de Luanda, Rio de Janeiro, Lisboa e Lourenço Marques (hoje Maputo, então chamada pelos locais, também, de Xilunguíne, Mafumo ou Cafumo). Ele publicou uma correspondência polêmica no Correio do Rio de Janeiro em 1822, residindo ao tempo na capital carioca. Mais tarde, voltando a residir no Rio de Janeiro, solicitou exame censório para a peça Jenny, a bordadeira (DECOURCELLE; BARBIER, 1851), que um seu filho teria traduzido. A solicitação demonstra que o jornalista estava atualizado, bem como o meio: o libreto, impresso em 1851, dizia respeito a uma peça em cinco atos estreada em Paris no ano anterior; ela veio a ser representada em 1857 no Rio de Janeiro, no teatro de São Pedro de Alcântara (AMORIM, 2008, p. 30) – possivelmente a partir de outra tradução.
O periódico terminou na sequência das acusações de Carvalho e Menezes ao abandono das colónias, o que levou a uma acesa discussão com o poderoso ministro Sá da Bandeira, à renúncia ao cargo de deputado, à venda apressada da tipografia do jornal (PACHECO, 2000) e à fuga que o traria para o Rio de Janeiro, onde publicou o último livro (1848) e faleceu.
Na época, sobretudo a partir dos números polêmicos, o periódico teve algum impacto em Angola e Portugal. Hoje é recordado no âmbito dos estudos sobre o século XIX em Angola.
Pode ser encontrado e consultado na Biblioteca Nacional de Portugal em Lisboa.
Francisco Soares
Para saber mais:
AMORIM, Mariana de Oliveira. Folhetins teatrais e Conservatório Dramático Brasileiro: o espetáculo francês nos palcos da corte (1843-1864). Rio de Janeiro: Fundação da Biblioteca Nacional, 2008.
CORRADO, Jacopo. The Rise of a New Consciousness: Early Euro-African Voices of Dissent in Colonial Angola. e-Journal of Portuguese History, winter de 2007.
DECOURCELLE, Adrien; BARBIER, Jules. Jenny l'ouvrière: Drame (5 Actes). Paris: Librairie Theatrale, 1851.
MENEZES, Joaquim António de Carvalho e. Intelectual mulato de Luanda replica a discurso de Sá da Bandeira. Paquete do Ultramar, 18 jan. 1840, p. 657.
PACHECO, Carlos. Leituras e bibliotecas em Angola na primeira metade do século XIX. Locus: Revista de História, jul.-dez. 2000. p. 21-41.
______. Joaquim António de Carvalho e Meneses e a génese da polémica literária em Angola. Nós: revista internacional de lusofonia, 1995. p. 346-360.
Publicação do verbete: mar. 2022.