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Carmen da Silva
Carmen da Silva nasceu na cidade do Rio Grande, no Rio Grande do Sul, em 31 de dezembro de 1919. Psicóloga com formação psicanalítica, jornalista e escritora, é conhecida até hoje como um dos símbolos da modernização da imprensa e da sociedade brasileira contemporânea e por ser pioneira do movimento feminista no Brasil. Carmen da Silva iniciou a exercer o jornalismo ainda jovem, na década de 1940, e o fez durante os vinte anos em que viveu no Uruguai e na Argentina. Nesse período descobriu sua condição plural ao tomar contato com a literatura de forma mais intensa e circular no meio cultural entre os intelectuais latino-americanos integrantes da Associação Psicanalítica e da Sociedade Argentina de Escritores (SADE). Escreveu e publicou nessa época artigos e contos para jornais e revistas argentinos, entre eles La Gaceta de Tucumán, Leoplan, Damas y Damitas, Atlântida e El Hogar.
A escritora rio-grandina em nenhum momento identificou-se com o perfil correspondente ao padrão estabelecido para as moças de sua época. Mas sua vida transformou-se de fato em 1962, quando voltou ao Brasil e decidiu morar no Rio de Janeiro. A partir daí consolidou-se no jornalismo, colaborando para revistas femininas, as quais contribuiriam para a formação do pensamento de gerações de mulheres brasileiras, sobretudo depois que Carmen passou a publicar artigos na coluna “A arte de ser mulher” da revista Claudia, Editora Abril, de 1963 a 1985. Em seu último livro, Histórias híbridas de uma senhora de respeito (1984), ela relata a respeito da imensa receptividade de suas leitoras e das dificuldades em suas experiências de jornalista e mulher, surpreendendo com seu estilo sempre atual, jocoso, leve, agradável de ler, igualmente demarcado pela qualidade literária. Sua coragem e seu pioneirismo contra a herança do sistema patriarcal até hoje provocam e desafiam homens e mulheres à reflexão.
Os ecos dos movimentos feministas penetraram na editoria de Claudia, que tomou a atitude liberal de reunir vozes dissonantes, mesclando o ideal tradicional aos discursos modernizantes no espaço dessa coluna, que antecipou os debates mais tarde encampados pelo discurso feminista em circulação no Brasil: o uso da pílula anticoncepcional, a inserção da mulher no mercado de trabalho, o divórcio, a dupla jornada de trabalho, a igualdade de direitos entre os sexos. Carmen desmistificava a “rainha do lar” ao mostrar a limitação dos horizontes da mulher, a quem a sociedade não exigia mais do que as habilidades necessárias às tarefas domésticas. O mais interessante em seu pensamento, contudo, era a defesa permanente de uma relação de companheirismo entre homem e mulher e a necessidade de respeito entre pais e filhos por meio da superação de preconceitos e tabus.
Carmen da Silva participou ativamente das principais manifestações públicas em defesa dos direitos da mulher. Em passeatas organizadas pelo movimento feminista no Rio de Janeiro, foi mais de uma vez às ruas à frente das mulheres, incitando-as a tomar consciência de si mesmas e de suas próprias contradições. Um exemplo é a foto aqui reproduzida, em que está fantasiada de “rainha do lar”, na passeata em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, em 8 de março de 1983.
Autora de sucessos literários em que geralmente o tema central era a mulher, Carmen da Silva publicou os livros Setiembre (1958), Sangue sem dono (1964), Fuga em setembro (1973) e Histórias híbridas de uma senhora de respeito (1984); as coletâneas Guia das boas maneiras (1965), A arte de ser mulher (1966), O homem e a mulher no mundo moderno (1969); e a novela Dalva na rua Mar (1965). Seu último livro, a autobiografia híbrida, Histórias híbridas..., foi publicado um ano antes de seu falecimento, o que ocorreu depois de proferir uma palestra sobre feminismo e jornalismo no auditório do SENAC, em Resende/RJ, quando Carmen sentiu-se mal. Vítima de um aneurisma abdominal fulminante, ela veio a falecer em Volta Redonda, no hospital da Companhia Siderúrgica Nacional, em 29 de abril de 1985. Foi sepultada no dia seguinte, no Cemitério de São João Batista, Rio de Janeiro.
Carmen da Silva, uma das pioneiras e mais notáveis feministas brasileiras do século XX, mantém essa condição até hoje.
Nubia Hanciau
Para saber mais:
SILVA, Alexandre Pinto da. Carmen da Silva, Caderno n.º 1: rastros, memórias, histórias: recortes e recordações de uma vida. Dissertação (Mestrado em Letras). Instituto de Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 2015. Disponível em: http://www.repositorio.furg.br/bitstream/handle/1/6134/Dissertação%20Alexandre.pdf?sequence=1.
Sobre a autora:
Site do projeto “Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro”: www.carmendasilva.com.br.
Publicação do verbete: maio 2024.
Catarina de Lencastre, 1.ª Viscondessa de Balsemão
Catarina Micaela de Sousa César e Lencastre nasceu em Guimarães, Portugal, a 29 de setembro de 1749, filha de duas famílias que cultivavam pergaminhos literários. O pai, Senhor de Vila Pouca, era poeta em saraus de Guimarães e neto de Francisco Alcoforado, autor de um Manual político (1733) elogiado por Francisco Manuel de Melo; a mãe, filha do 3.º Visconde de Asseca (um dos 21 académicos da primeira Academia Real de História), sobrinha-neta da poetisa Soror Maria do Céu.
Catarina de Lencastre desde cedo deve ter participado em convívios poéticos (Nicolau Tolentino recordaria os seus talentos juvenis). Mas as primeiras composições da autora (sem data) encontram-se somente numa coleção manuscrita de 1788 (hoje na Biblioteca Nacional de Portugal), já depois de ter casado com Luís Pinto de Sousa. É numa composição que o noivo lhe dedica que aparece um primeiro nome arcádico de Catarina de Lencastre (“Coríntia”), mas seguir-se-ão outros, como “Célia” ou “Natércia”. A nomeação de Pinto de Sousa para diplomata em Inglaterra parece ter incentivado o seu desejo de instrução. A coleção manuscrita de 1788 parece corresponder a esse período (1774-1788), ainda que não restem traços de uma toponímia inglesa. Falam da paisagem (do Douro, do Tejo ou do Mondego), do estado amoroso e outros opostos estados de alma, mas também da sua admiração pela ação do Marquês de Pombal (mesmo depois do seu desterro, em 1777).
O regresso do casal a Lisboa tornaria talvez mais assídua a convivência com outros poetas, como Leonor de Almeida (Marquesa de Alorna), Teresa de Melo Breyner (Condessa do Vimieiro), Joana Isabel Forjaz, Bocage, Nicolau Tolentino de Almeida, António Ribeiro dos Santos, Curvo Semedo, José Agostinho de Macedo, Manuel Silva Alvarenga ou Paulino António Cabral (Abade de Jazente). O papel de Ministro do Reino (1800) e a atribuição ao marido do título de 1.º Visconde de Balsemão (1804) contribuíram certamente para a sua visibilidade, mas também o seu entusiasmo poético faz com que o seu nome apareça em muitos poemas e dedicatórias. Dessa convivência são prova a cópia de poemas seus sem assinatura. Algumas poesias de Catarina de Lencastre aparecerão depois impressas na obra de outros poetas. O seu soneto “Fecunda Natureza, em vão procura” será atribuído à Marquesa de Alorna, na edição póstuma preparada pelos seus filhos, em 1844; o soneto “Zoroastes na Pérsia, Hermes no Egito” figura erradamente na obra do Abade de Jazente (editada sem supervisão do autor). Não é possível esclarecer a influência (ou o efeito que nela teve) a peça O triunfo da Natureza, de Nolasco da Cunha, em parte por só se conhecer a versão manuscrita de Catarina de Lencastre, não datada.
É sobretudo nas composições que escreve depois do período do Terror (1791), durante a Guerra das Laranjas (1801), no contexto das Invasões Francesas (1808-1810) ou nos anos que antecedem a Guerra Civil (de 1821 e até à sua morte, em 1824) que a lemos mais ativa, nos folhetos. Usa a poesia para incentivar os soldados ou lamentar a impossibilidade de, por ser mulher, não os poder seguir. Uma compilação de fábulas no ano de 1806 testemunha um espírito satírico ausente nos outros géneros.
Com quase 72 anos (1821), Catarina de Lencastre subiria ainda ao palco do Teatro de São Carlos, em Lisboa, segundo relata, nas Memórias, o neto da Marquesa de Alorna, a "bater as palmas, pedir silêncio à plateia e recitar varias odes e sonetos em louvor do General em chefe do Exército revolucionário, Gaspar Teixeira, seu próximo parente".
Catarina de Lencastre morre a 4 de janeiro de 1824, ditando sonetos sobre a clemência divina ao padre que lhe dava a extrema-unção. Se excluirmos os textos escritos para os soldados, serão os primeiros da sua lavra que saem impressos, no jornal Correio do Porto, logo a 6 de janeiro de 1824. Por permanecer a sua obra em manuscrito, ou dispersa em almanaques, folhetos volantes e jornais, os historiadores literários vão-a esquecendo. Balbi e Bouterwek referem-na, Almeida Garrett inclui-a no Parnaso Lusitano, mas depois será cada vez mais rara a sua presença nas histórias da literatura, por não ter obra impressa reunida. Desse silêncio a tentaram resgatar os estudos de Zenóbia Cunha e Maria Luísa Malato Borralho, estando a sua obra no prelo.
Maria Luísa Malato Borralho
Para saber mais
SALVADO, António. Antologia da poesia feminina portuguesa. [s.l]: E. F.; Ed. Jornal do Fundão, s.d.
Publicação do verbete: maio 2024.
Clarim da Alvorada, O
O mensário negro, fundado como O Clarim, na cidade de São Paulo, por Jayme de Aguiar e José Correia Leite, em 6 de janeiro de 1924, adicionou os termos da Alvorada na quinta edição, mantidos até sua extinção, em 28 de setembro de 1940. Ao todo, foram publicados 78 números. Entre a edição de estreia e o número 36, datado de 15 de outubro de 1927, a direção ficou a encargo de José Correia Leite e Jayme de Aguiar, sob o pseudônimo de Jim de Araguary.
Depois de uma breve interrupção, a publicação foi retomada em 5 de fevereiro de 1928, com Urcino dos Santos e João Soter da Silva como diretores e, para marcar a nova etapa, inseriu-se no cabeçalho os dizeres “Segunda fase”, e a numeração foi reiniciada. A partir de 23 de agosto de 1930, Sebastião G. Castro agregou-se à direção e permaneceu no jornal até o encerramento desta fase, em 13 de maio de 1932. Após oito anos, uma única edição, que retomou o título, foi publicada em 28 de novembro de 1940, sob a batuta de José de Assis Barbosa, em homenagem à Lei do Ventre Livre. Nota-se a inscrição “Terceira fase” no cabeçalho, indicativo do intento de dar continuidade à publicação, o que não ocorreu.
O periódico possuía quatro páginas, as imagens eram raras e os anúncios divulgavam estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços da própria comunidade negra. Os números avulsos custavam 200 réis, a assinatura semestral 3 mil e a anual variava entre 5 e 8 mil, valores abaixo daqueles cobrados pelos jornais de grande circulação. A imprensa negra do período lutava com dificuldades de ordem econômica e material, tanto que muitos jornais sobreviveram menos de um ano, pois eram feitos por e se destinavam a pessoas, em geral, menos favorecidas, fruto de séculos de escravismo e da falta de reparação social.
Jayme de Aguiar e José Correia Leite foram os principais redatores durante toda a existência do jornal, ambos autodidatas. Aguiar escrevia, sobretudo, poemas e contos, nem sempre diretamente relacionados com o movimento negro, enquanto Leite respondia por textos em prosa, com críticas explícitas à desigualdade racial.
No cabeçalho do primeiro número, o jornal estampou o subtítulo “Órgão Literário, Científico e Político”, que se alterou para “Literário, Científico e Humorístico” na segunda edição, e para “Literário, Noticioso e Humorístico” na terceira. Na segunda fase, iniciada em 1928, nova mudança, desta feita para “Noticioso, Literário e de Combate”. A permanência do termo “literário” indica a relevância do conteúdo para o projeto editorial da folha, pois, não raro, a ficção se constituía em oportunidade para criticar o preconceito racial e reafirmar a importância da cultura negra para a constituição da nacionalidade brasileira, bem como a necessidade de valorização dos afrodescendentes, com especial destaque para as mulheres negras. São exemplos o poema “À gente negra”, de Arlindo Veiga, veiculado em 15 de janeiro de 1927, e o soneto “À mãe preta”, autoria de Reis de Carvalho e estampado em 13 de maio de 1929. Ademais, os redatores reproduziram obras de autores negros célebres para homenageá-los e utilizá-los como exemplos fosse de ascensão social ou da produção intelectual, sempre associadas à educação, discurso perceptível desde a edição de estreia d’O Clarim, que, na primeira página, estampou o poema “Coração”, de Cruz e Sousa, seguido de breve biografia e de artigo intitulado “Imitemo-los”.
Considera-se que a criação d’O Clarim da Alvorada em 1924 inaugurou a segunda fase da imprensa negra paulista (1924-1937), caracterizada pela acentuação da combatividade dos periódicos produzidos por e para afrodescendentes. A trajetória da folha esteve atrelada ao Centro Cívico Palmares (São Paulo, 1926-1929), entidade fundada em prol da melhoria das condições de vida dos negros, com enfoque na alfabetização, tal qual a Frente Negra Brasileira (São Paulo, 1931-1937) – a maior organização afrodescendente da década de 1930 –, pois, além da folha divulgar as atividades de ambas as entidades, alguns de seus colaboradores também eram membros filiados às agremiações. Além disso, O Clarim da Alvorada destacou-se por adotar o pensamento panafricanista na sua coluna “O Mundo Negro”, na qual defendeu concepções de intelectuais como as do norte-americano Marcus Garvey, que mantinha o jornal Negro World (1918-1933), inspiração para o nome da coluna, e Robert Abbot, fundador do Chicago Defender (1905-), com o qual José Correia Leite mantinha contato.
O Clarim da Alvorada está disponível para consulta na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Ingrid Aveldiane Adriano Pardinho
Para saber mais:
SANTOS, Renan Rosa dos. Ideias e ações pela integração negra: a trajetória do jornal O Clarim da Alvorada (1924-1932). 2021. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2021.
Publicação do verbete: nov. 2024.