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João Simões Lopes Neto
Fonte da foto: página do IJSLN
Nascido a 9 de março de 1865, em Pelotas, cidade às margens da Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, João Simões Lopes Neto, filho de Catão Bonifácio Lopes e de Thereza de Freitas Lopes, teve sua vida ligada ao teatro, à literatura, ao empreendedorismo e à imprensa. A dramaturgia lhe concedeu um reconhecimento local no seu tempo, enquanto sua produção literária mais tardia, já no início do século XX – destaque para os Contos gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913) –, somente foi valorizada décadas após seu falecimento, ocorrido em 14 de junho de 1916, em decorrência de complicações de uma úlcera duodenal.
Viveu sua infância na Estância da Graça, arredores da cidade de Pelotas, em um período no qual afloravam os movimentos abolicionistas e republicanos e em meio à época final do apogeu do charque, principal riqueza da região. A contraditoriedade do seu tempo, entre o desenvolvimento de uma cultura urbana sustentada pela exploração do trabalho escravo, trouxe várias demandas e oportunidades para expressar essa realidade. E, entre os vários revezes enfrentados com seus empreendimentos comerciais, seu envolvimento com a imprensa sempre esteve presente, iniciando no jornalismo de colaboração em 1888, três anos após retornar com os estudos inacabados do Rio de Janeiro, com a publicação de dois poemas no jornal A Pátria, de propriedade de Ismael Simões Lopes, tio de João Simões Lopes Neto.
Neste mesmo jornal, viria a escrever a seção “Balas de estalo”, que foi interrompida no final de 1888 e retomada em 25 de abril de 1889, sendo mantida até 20 de agosto de 1890. Carlos Francisco Sica Diniz comenta que essa seção era “sempre assinada por algum João, com nome composto associado ao riso. E assim foram desfilando o João Ripouco, o Riforte, o Rimuito e múltiplos outros componentes desses clonados Joões: Riduro, Rimole, Risempre, Rimiúdo, Ripianíssimo, Rimudo, Risurdo, Rocegosurdo, Rilonge, Riperto, Rigago, Ritossindo, Ripasmo, Riverde, Rivotos, Riinchado, Rimaduro. Contudo, o título dessa coluna de jornal não foi criado por Simões Lopes Neto. “Balas de estalo” foi o nome de uma seção da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, durante os anos de 1884 a 1885, na qual colaboravam diversos autores; assinando-se Lélio, Machado de Assis era um deles” (Diniz, 2003, p. 66). Adota o pseudônimo Serafim Bemol – que assinaria várias de suas produções ao longo dos anos, incluindo as peças de teatro – no final de 1888 para uma série de seis crônicas publicadas no diário A Pátria sob o título “O Rio Grande à vol d’oiseau”.
As tensões políticas no início da República também trouxeram notícias envolvendo João Simões Lopes Neto, como na ocasião em que, juntamente com o irmão de Ismael, Manuel Simões Lopes, se envolveu em uma luta corporal contra um grupo de monarquistas após uma conferência de Alcides Lima em 17 de agosto de 1889. Como o A Pátria se situava em um espaço independente, essa pauta exigiu um posicionamento em que os envolvidos na agressão não agiam em nome da publicação. A nota publicada, provavelmente redigida por João Simões Lopes Neto, foi recebida como uma tentativa de o jornal não assumir seu vínculo antimonarquista, especialmente porque protegeria o legado da família e o título de nobreza do Visconde da Graça, avô de João Simões Lopes Neto. No final de 1889 publica nesse jornal uma tradução de um artigo da revista parisiense L’Amérique, intitulada “A barra do Rio Grande” e assinada por Serafim Bemol.
Em 1890, instala-se como despachante geral e continua publicando no diário A Pátria, agora com a coluna “Tesoura hilariante” em que abordava vários temas do cotidiano, reeditando os pseudônimos da primeira fase de “Balas de estalo”. Em 4 de junho de 1891, o jornal A Pátria encerra suas atividades e o seu acervo é adquirido pelo Diário Popular, vinculado ao Partido Republicado e fundado em 27 de agosto de 1890. O Diário Popular permaneceu como um dos jornais mais importantes do Rio Grande do Sul ao longo de 133 anos, encerrando suas atividades em 12 de junho de 2024.
Casa com Francisca de Paula Meirelles Leite em 1892, ano em que as discórdias dentro do Partido Republicano se acirraram, culminando com a Revolução Federalista (1893-1895), conflito marcado pela extrema violência, tendo como marca trágica a degola dos prisioneiros. Começa a escrever para o Diário Popular em 1º de janeiro de 1893 com o artigo “As nossas indústrias”, seguido de uma série de seis artigos sobre a “Canalização do Arroio Santa Bárbara e melhoramentos anexos”. Retoma a sua produção junto ao Correio Mercantil novamente com o pseudônimo de Serafim Bemol, agora com uma novela de folhetim escrita em coautoria com Dom Salústio e Sátiro Clemente. Essa novela, A mandinga, se estendeu por quinze capítulos, sendo concluída em 14 de dezembro de 1893. Nesse período conturbado, Diniz escreve que eram “Tempos de guerra, João Simões Lopes Neto não aderiu à revolução, mantendo-se fiel ao Partido Republicano. A fidelidade aos antigos ideias republicanas, como parece ter sido o caso de Simões Lopes, não significava estar em apoio às perseguições políticas que porejavam no Rio Grande, a partir da retomada do poder pelos castilhistas, em junho de 1892. Já filiado ao Partido Republicano e nomeado tenente da Guarda Nacional, sem no entanto entrar em combate contra os federalistas revolucionários, Simões Lopes manteria sempre uma postura sóbria, um tanto avessa às campanhas partidárias” (Diniz, 2003, p. 82).
Paralelamente à sua produção teatral, grande parte em parceria com Mouta-Rara, pseudônimo de José Gomes Mendes, cunhado de João Simões Lopes Neto, retoma a coluna “Balas de estalo” no Diário Popular no ano de 1895. A coluna é sucedida pela série “A semana passada”, redigida na forma de esquetes teatrais, sendo publicada quatro vezes entre setembro e outubro daquele mesmo ano. Em 1896, nova coluna, “A semaninha”, que se inicia em 18 de abril e permanece até o final do ano, tendo colaboradores outros jornalistas do jornal, como Raul D’Anvers. Vem a colaborar com um novo jornal, A Opinião Pública, adotando um novo pseudônimo: João do Sul, nome que também seria utilizado em 1914 nas publicações dos Casos do Romualdo nas páginas do Correio Mercantil.
O vínculo com a imprensa, por parte de João Simões Lopes Neto, não foi de uma atuação como jornalista investigativo ou procurando a notícia, mas sim da utilização desse veículo para divulgação de temas cívicos, educacionais e culturais, notadamente literários. Um escritor que se infiltrou no espaço permitido pelos jornais para essa produção além da notícia, refletindo sobre os acontecimentos e dialogando com o seu tempo. Seu entusiasmo mantinha esse canal de diálogo aberto, sendo notícia quando se envolvia em uma nova atividade, seja de cunho empresarial, seja quando foi eleito presidente do Clube de Ciclistas de Pelotas, em 1898, ou do seu ingresso na entidade tradicionalista União Gaúcha, em 1901, agremiação que viria a presidir em 1905. Cabe mencionar também sua atuação junto à Bibliotheca Pública Pelotense, como um de seus diretores a partir de 1907.
No ano de 1910 é um dos fundadores da Academia de Letras do Rio Grande do Sul, vindo a ocupar a cadeira de número 3. Em 1911, preside a Sociedade Rio-Grandense Protetora dos Animais e promove o lançamento da Revista do 1º Centenário de Pelotas, que, segundo Luís Rubira, “foi o mais importante empreendimento historiográfico de João Simões Lopes Neto. Não o único, contudo, pois ele concebeu vários outros textos e projetos de cunho histórico. Foi talvez o mais bem-sucedido” (Rubira, 2012, p. 71). É a Revista Centenária o seu primeiro projeto de jornalismo profissional, quando também começa a atuar como redator remunerado n’A Opinião Pública.
Seu trabalho no Diário Popular ganha fôlego com a publicação de onze dos dezoito contos do livro Contos gauchescos, que viria a ser lançado quatro meses após a divulgação nas páginas do jornal do décimo primeiro conto, “Penar de velhos”, em 5 de maio de 1912. Os demais contos foram publicados entre 31 de março e 1º de maio de 1912, nesta ordem: “No manantial”, “Trezentas onças”, “O boi velho”, “Correr eguada”, “Melancia – coco verde”, “O anjo da vitória”, “Os cabelos da china”, “O mate do João Cardoso”, “Chasque do Imperador” e “Jogo do osso”. No ano seguinte, Simões Lopes se aproxima d’A Opinião Pública, realizando várias publicações ao longo do ano com os pseudônimos de Serafim Bemol, como no texto “Aos estudantes de Pelotas”, e de João do Sul – destaque para a seção “Inquéritos em contraste” e para os dois primeiros Casos do Romualdo, “A quinta de S. Romualdo” e “A enfiada de macacos”, além do conto O menininho do presépio, datado de 31 de dezembro de 1913, que viria a ser incorporado aos demais contos na edição crítica Contos gauchescos e Lendas do Sul, de 1949, que aparece assinado com o seu próprio nome. É também nas páginas d’A Opinião Pública que João Simões Lopes Neto anuncia, em 14 de agosto de 1913, o lançamento do livro Lendas do Sul ao preço de um mil réis o exemplar.
Em 1914, vem a assumir a direção do Correio Mercantil, sucedendo a José Carlos de Sousa Lobo. A partir de maio, Simões Lopes realiza mudanças e alterações que modernizam e melhoram o jornal, inaugurando “Diárias”, que funcionou como editorial, inspirada em “Várias”, do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro. É também no Correio Mercantil, no período de 1º de junho a 21 de julho, que surgem os folhetins dos Casos do Romualdo, obra que, por iniciativa e trabalho de Carlos Reverbel, será publicada em formato de livro no ano de 1952 pela Editora Globo.
João Luis Pereira Ourique
Para saber mais:
SCHLEE, Aldyr Garcia. Cronologia de João Simões Lopes Neto. Cadernos Porto & Vírgula, Porto Alegre: IEL; IGEL, 1991.
Sobre o autor:
Página administrada pelo Instituto João Simões Lopes Neto (IJSLN) – “Conservando viva a obra de João Simões Lopes Neto”: joaosimoeslopesneto.com.br.
Publicação do verbete: jun. 2024.
Jornal das Famílias
O Jornal das Famílias (1863-1878) foi um periódico mensal que circulou durante dezesseis anos por várias províncias brasileiras e por pelo menos outros dois países, Portugal e França. Era impresso em Paris e voltava ao Rio de Janeiro, de onde era redistribuído por todo o Brasil. Com o tempo, passou a circular também em Lisboa, Braga e no Porto. Baptiste-Louis Garnier foi seu editor-proprietário desde o início até 1876. A partir do número I do ano XV, ou seja, de janeiro de 1877, a capa da “publicação ilustrada, recreativa, artística etc.” passou a estampar o nome de E. Belhatte (Germain Eugène Belhatte) como coeditor do projeto de Garnier, parceria editorial que vinha se fortalecendo também no suporte livro, nos anos 1870.
No início, como se lê na edição de janeiro de 1863, o editor declarou o seu engajamento na construção de uma revista dedicada “aos interesses domésticos das famílias brasileiras”, o qual funcionaria como um continuador aperfeiçoado da Revista Popular (1858-1862), também da propriedade de Baptiste-Louis Garnier. Os colaboradores seriam “os mesmos distintos cavalheiros a quem tanto deve a Revista, acrescentando outros que tivemos a honra e a fortuna de angariar” (Jornal das Famílias, “Aos leitores”, n. 1, jan. 1863, p. 1). Já estavam Joaquim Norberto de Sousa e Silva, o Cônego Fernandes Pinheiro, Justiniano José da Rocha, entre outros importantes homens públicos brasileiros (Zacarias de Gois e Vasconcelos, por exemplo), ou homens de letras do domínio lusófono (Alexandre Herculano, por exemplo). Entre os novos, o então jovem literato e jornalista Machado de Assis, o mais frequente escritor da seção “Romances e novelas” ao longo de toda a história da publicação, cuja colaboração com textos de ficção curtos ou relativamente curtos (seriados, em duas ou três edições), apareceu sob mais de uma dezena de pseudônimos. Isso mostra, ao mesmo tempo, uma vocação e uma limitação do Jornal das Famílias: a vocação foi publicar, além da traduzida, a ficção produzida no Brasil ou em português, configurando-a como variada, ainda que à custa de várias personas de um mesmo escritor; a limitação foi não poder contar com a diversidade pretendida, o que indica o artifício dos pseudônimos. Além de Machado de Assis, embora não tão frequentes, há textos de ficção de Augusto Emilio Zaluar, Joaquim Manuel de Macedo, Bernardo Guimarães, colaborações assinadas por pseudônimos femininos (Vitoria Colonna e Paulina Philadelpha, por exemplo), mas há também contribuição feminina genuína (Honorata Minelvina Carneiro de Mendonça e Emília Augusta Gomide Penido). Segundo Alexandra Pinheiro, a análise das narrativas do Jornal das Famílias mostra que a literatura brasileira não foi construída apenas pelos literatos hoje consagrados pela crítica, mas também por um grupo amplo de escritores preocupados com questões estéticas, políticas e sociais. Apesar de o público-leitor do Jornal das Famílias ser principalmente composto por mulheres, ao contrário do que se pode imaginar, o conteúdo de “entretenimento” do jornal (ficção, modas, moldes, curiosidades, assuntos domésticos) não foi o único oferecido às leitoras desse periódico. Elas foram inseridas em debates importantes para o século XIX, como a consolidação de uma literatura nacional e a condição do escritor brasileiro (PINHEIRO, 2007).
O Jornal pretendia servir “ao recreio e utilidade das famílias”, “dobrando os zelos” na escolha de artigo que servissem “à economia doméstica, à instrução moral e recreativa, à higiene, numa palavra, ao recreio e utilidade das famílias”, como propõe no texto de apresentação da primeira edição. Incorporado a uma ação editorial de Garnier na época, o volume era nitidamente impresso em Paris e, adquirindo por lá os clichês, o editor propunha “gravuras, desenhos à aquarela coloridos, moldes de trabalho de crochê, bordados, lã, tapeçaria, figurinos de modas, peças de música inéditas etc., para o que tem contratado naquela capital os melhores artistas”.
Ao longo dos anos, Baptiste-Louis Garnier conseguiu criar uma rede de colaboradores e leitores, a qual incluía diferentes províncias brasileiras, mais as cidades de Braga, Porto e Lisboa em Portugal e, inevitavelmente, Paris (chez E. Belhatte, e não na Maison dos Garnier Frères). Como nos mostram os dados extraídos das “condições de assinatura” e dos anúncios de locais de vendas de obras da editora de Garnier em 1878, ano derradeiro da publicação, o Jornal das Famílias mantinha correspondentes na Bahia, em Campanha, Campos, Cantagalo, Ceará, Cuiabá, Goiás, Juiz de Fora, Maceió, Macaé, Manaus, Maranhão, Mogi-Mirim, Pará, Paraíba do Sul, Paraíba do Norte, Passo Fundo das Missões, Pelotas, Pernambuco, Pindamonhangaba, Rezende, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Santa Fidelia, São Gabriel, São Paulo, Teresina, Três Corações do Rio Verde, Braga, Lisboa, Porto e Paris. Os exemplares de 1878 do Jornal das Famílias indicam que se procurem pelos livros anunciados por Garnier e que se façam assinaturas desse periódico nos correspondentes comerciais de cada uma dessas localidades, o que dá a dimensão de sua circulação nacional e internacional.
Todos esses fatos mostram que, a partir dos anos 1860, e com grande apoio do Jornal das Famílias, que foi o veículo primeiro de várias publicações em livro da casa Garnier, Baptiste-Louis Garnier conseguiu delimitar com precisão o lugar que ocuparia junto às letras e aos meios intelectual e editorial no Brasil. A partir daí, criou um mercado para a literatura em português (notadamente a brasileira), que passou a publicar, usando os métodos dos editores europeus e criando uma ponte de impressos entre a Europa e o Brasil.
Lúcia Granja
Para saber mais:
AZEVEDO, S. M.; MIRANDA, K. R. M. Revista Popular (1859-1862) e Jornal das Famílias (1863-1878): um perfil dos periódicos de Garnier. In: TriceVersa: Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro de Estudos Linguísticos e Culturais. Assis, v. 3, n. 2, nov. 2009/jun. 2010. Disponível em: www.assis.unesp.br/cilbelc. Acesso em: 7 maio 2020.
CRESTANI, Jaison Luis. Machado de Assis no Jornal das Famílias. São Paulo: Nankin; EDUSP, 2009.
GRANJA, Lúcia. Chez Garnier, Paris-Rio (de homens e de livros). In: GRANJA, Lúcia; LUCA, Tânia Regina de. Suportes e mediadores: a circulação transatlântica dos impressos (1789-1914). Campinas: Ed. da UNICAMP, 2018. p. 55-80.
PINHEIRO, Alexandra. Para além da amenidade: o Jornal das Famílias (1863-1878) e sua rede de produção. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária). Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007. Disponível em: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/teses/pdfs/alexandra.pdf. Acesso em: 7 maio 2020.
SILVEIRA, Daniela M. Contos de Machado de Assis: leituras e leitores do Jornal das Famílias. Dissertação (Mestrado em História Social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281951/1/Silveira_DanielaMagalhaesda_M.pdf. Acesso em: 7 maio 2020.
Sobre o periódico:
A Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, possui 183 edições do periódico, todas disponíveis em sua Hemeroteca Digital.
Publicação do verbete: dez. 2021.
José da Silva Maia Ferreira
Foto de Maia Ferreira (à direita) com o seu irmão Luís de Queirós Matoso Maia. Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa.
José da Silva Maia Ferreira nasceu em Luanda, a 7.6.1827 e faleceu no Rio de Janeiro de tuberculose mesentérica, tendo sido sepultado a 18.10.1867.
Ao longo de curta e agitada vida morou (por ordem cronológica) em Luanda, Rio de Janeiro, Lisboa, Rio de Janeiro novamente, Luanda novamente, Benguela, Luanda novamente, Nova Iorque e, por fim, Rio de Janeiro.
Filho do negociante homónimo (José da Silva Maia Ferreira) e de D.ª Ângela de Medeiros Matoso (de Andrade Câmara) Maia, sua segunda mulher, descende, pelo lado paterno, de famílias de Luanda (Angola) e da região do Porto (Portugal); pelo lado materno descende de famílias de origem vária luandense e portuguesa (em parte, açoriana) de que há registo em Luanda desde meados do século XVII.
Terá estudado no Rio de Janeiro (onde chegou com sete anos, a 16.12.1834) e depois em Lisboa (1840 ou 1841 a 1843 ou 1844), no Lycée Parisien (que lhe imprimiu dois desenhos: um retrato de D. Pedro I e uma cabana junto a um rio); não se sabe se chegou a matricular-se na Escola do Comércio, ou na Escola Politécnica (nenhum registo o menciona, havendo porém registos lacunares). Regressou ao Rio de Janeiro em abril de 1844, por falecimento do pai, começando a sua vida de funcionário público e negociante em seguida, já em Angola. Foi funcionário público em Luanda (para onde embarcou, do Rio de Janeiro, a 12.6.1845) e Benguela (Angola). É bastante provável que tenha casado (ou amigado) com uma luandense e tido uma filha, que faleceu muito nova, em Benguela, onde se manteve ligado ao grupo Jovem Luanda (sendo acusado, nesse âmbito, com os companheiros, de lusofobia). Na sequência de escândalo por identificar (talvez amoroso), foi demitido da função pública e fugiu para os EUA (Nova Iorque) em maio de 1851, a partir do porto livre do Ambriz, então integrado num sistema de portos livres ou governados por africanos e que, pouco tempo depois, seria conquistado pela colônia. Trabalhou no consulado português em Nova Iorque por iniciativa do cônsul (diplomata, negociante, escritor e maçom) Joaquim César de Figanière e Morão (ou Mourão). Foi agente de negócios (para a família Figanière e sua rede comercial) desde, pelo menos, 1852, realizando negócios próprios entre Nova Iorque e Havana (tabaco sobretudo). Há menção ao seu nome importando seis escravos em um navio negreiro apreendido a um comerciante português com negócios no Brasil e nos EUA.
Na sua itinerância terá passado ainda em Cabo Verde, Bissau (Guiné-Bissau), talvez na Gâmbia, em Espanha e pode ter passado por Inglaterra também. Manteve contactos comerciais e familiares, ao longo da vida, com pessoas em Angola e no Brasil. Intermitentemente manteve contactos com membros da elite portuguesa, alguns dos quais conhecera enquanto estudante (a maioria deles estudara na Escola Politécnica).
Não se relacionou com o Partido Conservador no Brasil, nem qualquer outro, apesar de um parente próximo de sua mãe ser uma das figuras salientes desse partido (Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara). Seu irmão mais novo (já nascido no Rio de Janeiro), médico de formação e que serviu na Guerra do Paraguai, se tornou professor de História “no internato do Ginásio Nacional”, ou seja, no Colégio D. Pedro II. Nesse âmbito produziu um manual de História do Brasil adotado para as escolas “de instrução secundária” (Maia 1880). Outras relações incluíam jornalistas (entre os quais Antonino José de Miranda Falcão) e diplomatas como Francisco Inácio de Carvalho Moreira ou Joaquim César de la Figanière e Morão, com seu filho, também escritor e maçom, Frederico Francisco Stuart de Figanière e Morão.
Nos meios literários ou culturais e jornalísticos os seus contactos o relacionavam, de forma geral, com a terceira geração romântica (e, por via dessa, com a segunda – de João de Lemos e de Gonçalves Dias), incluindo muitos que foram, para além de literatos e jornalistas, políticos. Elenco alguns nomes, sobretudo portugueses, mas também brasileiros e luso-brasileiros: António Freire de Serpa Pimentel, Casal Ribeiro (José Maria Caldeira), Raimundo António de Bulhão Pato, João d’Aboim, Luís Augusto Palmeirim, Ricardo Guimarães, Emílio Augusto Zaluar, A. P. da Costa Jubim, José Maria da Ponte e Horta, Francisco Maria Bordalo. A opção política da maioria destes amigos, em Portugal, era pelo Partido Regenerador; vários deles foram “setembristas”, colaborando no periódico A Revolução de Setembro (Lisboa, 1840-1901) e Casal Ribeiro foi republicano até à sua conversão (relativamente tardia) à monarquia liberal.
A carreira jornalística de Maia Ferreira não foi prolífica, centrando-se em crónicas, a maioria enviadas de (ou escritas em) Nova Iorque e Havana, sobre assuntos políticos locais ou sobre hábitos locais. Iniciou-a já residente nos EUA, remetendo colaboração para o Jornal do Comércio e o Correio Mercantil – ambos do Rio de Janeiro. Colaborou também na edição de 1856, feita em Filadélfia, do Lippincott Pronoucing Gazeteer (1856), organizado por um seu cunhado estadunidense, que lhe agradece o apoio relativo a Brasil e Portugal.
A vida literária de Maia Ferreira iniciou-se no Rio de Janeiro, a partir de contactos com o poeta e jornalista português, aí exilado, João d’Aboim. Por via desse poeta e jornalista português, amigo de Gonçalves Dias, nos anos de 1848 e 1849, publicou na Lísia poética, de José Monteiro Ferreira, juntamente com o seu amigo (brasileiro) A. P. da Costa Jubim. Publicou também no Boletim Oficial do Governo Geral da Província de Angola, em 1849, poemas homenageando o novo governador (Adrião Acácio da Silveira Pinto, que depois lhe foi adverso), D. Pedro de Alcântara, D. Fernando II e D.ª Maria II. No jornal O Peneireiro, de João d’Aboim, publicou ainda o poema «O exilado» (em 1855, ano da fundação do jornal), que deve ter sido composto durante a viagem que o levou do Ambriz até aos EUA (não se sabendo se terá passado, entretanto, por Lisboa). O poema seu publicado no Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para o ano de 1879 deve ter sido enviado por um desconhecido, na sequência de uma publicação idêntica assinada por outra pessoa, pois o poeta falecera doze anos antes.
A sua única obra impressa foi tipografada em Luanda, sob o título e subtítulo Espontaneidades da minha alma: às senhoras africanas. O título intertextualiza com homónimos e dedicatórias semelhantes em outros da época e, em particular, O livro da minha alma, de João d’Aboim, dedicado “às senhoras brasileiras”. Não se sabe ao certo se a finalização das Espontaneidades se deu no final de 1849 ou no princípio de 1850 (há poemas datados já deste ano). Foi impresso na tipografia do Boletim Oficial e terá constituído uma edição de autor. Trata-se, tanto quanto se saiba até hoje, do primeiro livro de poemas escrito por um filho da terra e publicado em Angola.
Pela data e pelas características estilísticas, emparceira com outros títulos que lançam o ultrarromantismo português e as segunda e terceira gerações românticas brasileiras. Regista muitas influências francesas (Chénier, Hugo, Delphine Girardin etc.), bem como de Almeida Garrett e de Gonçalves Dias (todas comuns aos vários românticos). Revela um domínio hábil dos jogos rítmicos (sobretudo de instáveis acentos e cesuras internas), das rimas, dos modelos estróficos vigentes na então nova escola e das figurações enunciativas (sugerindo quadros enunciativos e flexões pessoais ambíguos ou totalmente fictícios mas, como de regra entre românticos, autobiográficos na aparência).
A representação do feminino na sua poesia se reparte entre estereótipos europeus e mulheres definidas por traços psicossomáticos ligando-as à autenticidade, aos olhos escuros, à graciosidade no andar, aos peitos firmes, a uma tristeza profunda, à meiguice, à naturalidade.
Chegou a imprimir um prospeto anunciando as Memórias íntimas dum africano, mas de tal obra não veio nada mais até nós, pelo que pode nem se ter concretizado, ou ter-se perdido entre os papéis da sua família brasileira – caso ele tenha levado algum esboço ou manuscrito consigo ao regressar ao Rio de Janeiro. Visto que uma parte do espólio norte-americano não foi revelada, existe ainda a esperança de lá se encontrar o manuscrito dessa autobiografia. Em carta ao irmão Luís de Queirós, enviada de Nova Iorque, diz ter abandonado a poesia nos EUA, em razão da vida prática para que teve de se voltar. Em carta à mulher, escrita de Havana, descreve a sua nova crença ou ideia de Deus e do mundo em termos claramente maçônicos.
Segundo o n.º 290 (p. 3), do Correio Mercantil de 21.10.1867 (uma segunda-feira), foi sepultado no Rio de Janeiro, no dia 18.10.1867, “José da Silva Maia Ferreira, africano, 39 anos, casado. Tubérculos mesentéricos”. Entretanto erraram a idade, porque teria quarenta anos e quase quatro meses. O resto parece confirmar-se…
Francisco Soares
Para saber mais:
ANTT. José da Silva Maia Ferreira. 3 maio 2012. https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4707290 (acedido em 11. 1.2021).
FERREIRA, José da Silva Maia. Espontaneidades da minha alma: às senhoras africanas. Luanda: UEA, 1985.
_______. Espontaneidades da minha alma: às senhoras africanas. Luanda: Imprensa do Governo, 1849.
______. Espontaneidades da minha alma: às senhoras africanas. Intr. e notas Gerald Moser. Lisboa: Ed. 70, 1980.
______. Espontaneidades da minha alma: às senhoras africanas. Intr. Salvato Trigo. Lisboa: IN-CM, 2002.
______. Espontaneidades da minha alma: às senhoras africanas. Intr. e org. Francisco Topa. Porto: Sombra pela Cintura, 2018. http://web.letras.up.pt/ftopa/Livros/20.%20Espontaneidades.pdf. Acedido em: 12 jan. 2021.
PACHECO, Carlos. José da Silva Maia Ferreira: novas achegas para a sua biografia. Luanda: UEA, 1992.
______. José da Silva Maia Ferreira: o homem e a sua época. Luanda: UEA, 1990.
______. O nativismo na poesia de José da Silva Maia Ferreira. Évora: Pendor, 1996.
Publicação do verbete: mar. 2022.