“Uma infinita saudade invadiu-me a alma, ao recordar o bom tempo da minha meninice, que decorreu sob a tua benévola e acolhedora amizade. Como vai longe o tempo. Eu hoje estou casado. Vivo dentro da realização feliz do meu sonho de arte [...]. E agora, neste instante, recordando as muitas palestras que tivemos e relembrando esses vinte anos passados de lutas e conquistas, tendo diante dos olhos a sala de tua casa e a bondade dos teus conselhos, que nunca esqueci, chegam a me encher de lágrimas os olhos [...]. Desejava rever-te. Já não poderei ir ao Sul. Se viesses tu ao Rio...” (trecho da carta de Abadie de Faria Rosa para Francisco de Paula Faria Rosa, em 3/8/1927).
Dramaturgo consagrado no país, Alexandre Abadie de Faria Rosa tinha trinta e sete anos quando enviou esta carta para seu tio em Pelotas. Assinando-a como Boccaccio, ele afetivamente sinalizava que, embora morando no Bairro Santa Tereza no Rio de Janeiro, sua formação e seus sentimentos estavam inteiramente vinculados a seus familiares e a sua cidade natal. Filho do comerciante José de Faria Rosa Júnior (que havia sido um dos sócios fundadores do Clube Caixeiral, em 1879) e de Paulina Abadie (cujos pais eram franceses), ele nascera em 23 de agosto de 1889. Seu contato com a arte começara na infância: seu tio paterno, Francisco de Paula Faria Rosa, era um pintor pelotense (lamentavelmente hoje pouco lembrado entre nós), e seu tio materno, João Abadie, participava do “Corpo Cênico do Clube Caixeiral”, sendo um dos atores, em 1900, da peça Fifina, de João Simões Lopes Neto. João Abadie, mais tarde, se tornaria proprietário de uma conceituada loja de instrumentos musicais na rua XV de Novembro, sendo um dos “principais proprietários de prédios urbanos” na cidade.
Bem antes de partir para o Rio de Janeiro aos dezoito anos, Boccaccio já era bastante conhecido em Pelotas. Fazendo sua formação no Ginásio Gonzaga, ele participara de representações como O demônio familiar, peça encenada pelo “Grêmio dos Estudantes” que congregava alunos também do Ginásio Pelotense e da Escola de Agronomia. Foi somente após o “ato solene da colação de grau” do Ginásio Gonzaga, momento festejado com “imponência e brilho” (A Federação, 30/12/1905, capa), que ele iniciou os preparativos para estudar no Rio de Janeiro. Selecionado para a “Turma Suplementar” da Faculdade de Direito carioca em dezembro de 1906 (Correio da Manhã, 18/12/1906), decide por ingressar na Faculdade de Direito de São Paulo no ano seguinte. Passando suas férias em Pelotas, seus amigos lamentam a cada vez que ele deixa a cidade: “Na [corveta] Soturno deve seguir amanhã para Santos com destino a São Paulo em cuja academia cursa com brilhantismo o 2o ano do Direito, o nosso talentoso colaborador e apreciável jovem Boccaccio Faria Rosa, que nesta cidade goza de merecidas afeições” (A Opinião Pública, 23/3/1908, capa).
Formado em Direito em 1910, ingressa em seguida em Medicina, curso que logo abandona para dar vazão à sua vocação para o teatro. Como jornalista, passa então a atuar como crítico teatral na Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro (periódico que tinha, entre seus diretores, João do Rio, e que contava com nomes como Olavo Bilac). Poucos meses depois de Henri Bernstein escrever e estrear em Paris sua peça Le secret (no ano de 1913), Abadie lança-se na tradução do texto. A comédia dramática é encenada pela Cia. Eduardo Vitorino e ganha apresentações no Rio de Janeiro, no Teatro São Pedro em Porto Alegre (A Federação, 25/4/1914) e no Teatro 7 de Abril em Pelotas, em 15/7/1914.
Três anos depois, ele estreia no Rio de Janeiro um texto de sua autoria: a comédia Nossa terra, apresentada no Teatro Trianon em 23/7/1917. No artigo “Um verdadeiro escritor de teatro”, publicado no jornal carioca O País, o crítico João do Rio será o primeiro a reconhecer o talento de Abadie de Faria Rosa como um autor que trata de temas nacionais. No ano seguinte, em plena primeira guerra mundial, ele estreia com novo texto. Após a apresentação, é recebido “No salão do Restaurante Paris” com um “Banquete”, organizado pelo “Rio-Jornal”, por “motivo de grande êxito obtido pela deliciosa peça Soldadinhos de chumbo, ora em cena no Teatro Palace” (A Federação, 25/7/1918). A partir de então é praticamente impossível resumir em poucas linhas sua brilhante carreira. Basta dizer que entre 1917 e 1945 (ano de sua morte), Boccaccio escreve e encena mais de vinte peças de sua autoria (várias delas publicadas em livro).
Funcionário de carreira do governo desde 1914, atuando em diferentes gabinetes de Estado (Agricultura, Tesouro, Justiça), ele também foi um dos organizadores da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). Nomeado por Getúlio Vargas, também presidiu o Serviço Nacional do Teatro. Dentre as diversas traduções de obras que realizou, encontram-se duas de Pirandello.
Comediógrafo que nunca esqueceu sua terra natal, seu nome hoje está numa placa de rua que, da Dom Joaquim, cruza com aquela que leva o nome da soprano Zola Amaro e desemboca na Rua Luís de Camões. Nada mal. Certo é, porém, que ele ficaria bem mais contente se seu nome fosse lembrado nas intermediações do Teatro 7 de Abril – é de sua autoria, no Almanaque de Pelotas de 1918, um dos mais belos textos sobre o centro de sua cidade. E (por que não?) se uma de suas peças fosse novamente representada no teatro onde, um dia, ele fez questão de prestar um tributo aos seus pares antes de seguir seu destino como um talento de nível nacional.
Publicação do verbete: jul. 2024.